A mal amada
Não há outra resposta. D. Flora realmente era uma mulher muita rancorosa. Para ela nada estava bom, em tudo arrumava defeito. Exceto seu patrão. Naquele, não é que não encontrava defeito! Pra ser sincero, era ele o erro em pessoa, ainda mais por ter parado na vida dela.
O pior de tudo, seus rancores já estavam se infiltrando na minha vida. Também, com ela buzinando nos meus ouvidos o ano todo, sua voz parecia ter dominado a minha mente. Era impossível ficarmos um dia sem nos ver. Não que eu não gostasse da sua companhia, mas o destino era tão cruel comigo, pois o dia em que eu ousava a esconder-me dela, o destino nos surpreendia e isto, quando na maioria das vezes, eu não sonhava com ela. Cruz credo! Mas era verdade!
Era assim a minha vida desde que a conheci. Meus amigos eram a fonte do descarrego todas às vezes que eu precisava fazer algum desabafo das maluquices de D. Flora! Desabafo que muitas vezes eu percebia o quanto eles jamais desejariam um dia conhecê-la. Afinal, o que para mim era um sufoco, em saber que no dia seguinte iríamos nos encontrar, para os meus amigos, era um desespero, uma grande sacanagem do destino, de um dia junto a mim, encontrá-la e dali adiante terem a consciência do meu tormento.
D. Flora era uma mulher insuportável, o dia em que ela não abria a boca para falar mal do patrão, era capaz de no dia seguinte amanhecer doente.
Eu, com a pouca sabedoria que Deus havia me dado, procurava o máximo que podia correr dela. Tinha vezes que eu pegava, ou melhor, procurava pegar a condução atrasado ou mais cedo, só para não encontrá-la. Mas o destino persistia em ser cruel na minha vida; pois sempre nas minhas tentativas, D. Flora estava presente nas mesmas conduções.
Tinha dias em que eu procurava apelar para o destino, escondido atrás de uma árvore ficava esperando até que meus olhos presenciavam-na tomando a condução, deixando o ponto de ônibus, no qual, em poucos instantes teria eu que utilizá-lo para o trabalho.
E olha que eu conseguia! Porém, já no meio do trajeto, o destino que acostumava ser cruel comigo, mais uma vez impiedosamente me apunhalava pelas costas. A condução cujo eu estava, viria a socorrer os passageiros da linha anterior, passado minutos antes da minha condução.
Aquilo era fatal. Aquilo detonava o meu dia. E para se agravar, havia dias que pegávamos a mesma condução com uma moça de bela aparência, mas muito atrevida. Diante dos olhares de D. Flora, ela era uma santa; mas, por detrás, vivia imitando-a para mim.
Com receio de alvoroçar a fúria de D. Flora, eu nunca a dedurei, apesar de sempre a minha intenção era de causar o que se passava por minha mente, junto à D. Flora a enchê-la de bofetadas.
Diante de tudo aquilo que há anos acontecia comigo, e eu, nas minhas fragilidades, sempre desabafando aos meus amigos, conselhos era o que não me faltavam, volta e meia, ouvia deles que eu precisaria ser franco com D. Flora. Tudo bem! Força e vontade eram o que não faltava, mas diante das apreensões que ela sempre me causava, nunca tive coragem de realizar aquele velho desejo. Pois, sempre que pintava o velho desejo em mim, em leoa ela se transformava, por mais que eu nunca a barrei em seus desabafos.
O tempo ia passando. Foram seis anos dentro daquela rotina que aparentavam mais a um massacre de Hitler. Porém, o dia em que resolvi enfrentar este pepino de cabeça erguida, algo nos surpreendeu...
Era uma manhã fria... Eu e D. Flora como de costume havíamos pegado a mesma condução. Com as palavras já ensaiadas na ponta língua para soltar a ela, D. Flora me dá um toque:
— Fique esperto! Aquele pilantra está mal intencionado. – alertava ela aos sussurros, enquanto andávamos pela mesma calçada a poucos metros de distância do tal suspeito.
Eu, sem querer engolir as palavras às quais já havia passado à noite preparando a ela, num resmungo só respondi um “Anrran”.
Mas ela com um olhar de leoa sobre o indivíduo, ao resmungo prosseguia:
— Se ele ousar em relar a mão na minha bolsa, eu acabo com a raça dele.
No entanto, nos passos continuávamos, algo que o indivíduo também.
Nossos encontros aconteceram...
Ao desespero fiquei, pois diante do que eu ali presenciava, as palavras que eu havia passado à noite preparando-a para falar, sumiram, sem ao meu desejo realizar.
Mas, os berros que por ali se escutavam eram fatais, pois até as redondezas paravam e se aglomeravam para ver:
— Ai! Ai! – gemia o mau elemento de tanta dor.
— Tome safado! – enfurecia-se D. Flora, atacando-o com várias bolsadas, logo que lhe havia lançado ao chão, através de uma rasteira com as pernas. — Não vim ao mundo para apanhar de marmanjo! - Era o que ela contestava sempre que o mau elemento, mesmo caído no chão, procurava-se defender, segurando as mãos dela.
Para ela, poderia parecer que ele estava lutando, mas para quem via de fora, dava pra perceber que não era nada daquilo. Ele, na realidade, procurava apenas escapar das suas garras. Garras parecidas com as de leoa.
Alvoroço somente interferido com a chegada do camburão da polícia.
D. Flora mesmo longe de ser a vítima daquela circunstância, procurou-se defender como pôde, já que pelo levantamento da polícia, sua vítima tinha passagem pela justiça.
Por fim, D. Flora e o “mau elemento” foram levados à delegacia. Já eu, por estar à sua companhia, também não me faltou convite. Convite não, lugar no camburão, pois, ninguém me ofereceu um passeio na viatura. Com empurrões, junto ao “mau elemento” fui conduzido à delegacia.
Uma turnê que durou quase duas horas.
Meu tempo de permanência por ali acabou. O de D. Flora com o “mau elemento” também.
Porém, como já havia avisado ao meu serviço que chegaria atrasado naquele dia, saí aliviado dali, afinal, saí dali sem denegrir a minha imagem.
Entretanto, cansado das neuroses de D. Flora, decidi a partir daquele dia não pegar mais condução.
Comprei uma bike e por incrível que pareça fiquei bons meses sem vê-la.
Diante de toda aquela situação em que já havia passado, meses sem vê-la, foi a melhor coisa que poderia ter acontecido em minha vida, até que...
Já com D. Flora longe dos meus problemas, caminhava eu sossegado pela ciclovia com destino ao trabalho, quando de repente... Uma brusca freada eu ouço próximo a minha bike. Assustado, me desequilibrei, caindo ao chão, melhor, esticando-me ao chão.
Naquela hora, pensei que tivesse me chocado bruscamente com o tal veículo. Já estando mal de saúde, sem esforço, procurei não me levantar até que conseguisse sentir o meu corpo saudavelmente. Realmente eram dores. Mas dores do impacto da queda ao chão.
Devagarzinho dei uma leve levantada manhosa com a cabeça, cena que chamou a atenção da pessoa que estava mais próxima de mim.
— Calma aí! Eu ti conheço... – alegava a voz, a mesma que aparentava se aproximar de mim. E estava mesmo, aliás, mesmo com minha visão ruim, pude enxergar seja lá quem fosse, num coquinho aproximar-se do meu rosto. — Você é...
— Cruz credo! – horrorizava-me aos pensamentos, reconhecendo aquela voz. — A senhora está enganada.
— Não estou não. – insistia ela, me levantando, logo procurando socorrer a minha bike.
Leoa, como eu a conhecia, procurei não contrariá-la. Dei de inocente, poupando os gemidos e procurando me levantar, chegando até a bike.
— Você não está bem. – concluía ela, recusando a me passar a bike.
— Estou sim.
— Não está não. Quer ver? - afrontava ela, dando uma cutucada de leve em um dos meus braços. — Nem parece que caiu de uma bike. Parece mais que foi jogado do décimo nono andar.
— É que estou um pouco assustado.
— Sei. Vem cá! – ordenava ela, me puxando cuidadosamente até o veículo. — Entra aqui. Eu te levo ao serviço.
Sem força alguma, eu a obedeci. Enquanto ela assim que me colocava no carro, fechava a porta traseira com uma agilidade colocando minha bike no porta-malas. Após alguns segundos, colocando o carro em movimento. Com o carro em movimentação. D. Flora não se inibia, pegava a falar, primeiro, me apresentou a moça que estava em nossa companhia. Algo que me surpreendi, pois a moça, era a tal folgada que vivia imitando D. Flora no ônibus para mim. Moça desinibida, por ali, fez de conta que não me conhecia, era como se acabássemos de nos conhecer.
— Olha isso! – interferia D. Flora em nossos momentos, exibindo a mão direita e num dos dedos o anel de compromisso.
Experiente dos últimos meses que a conheci, não disse mais nada do que um simples “Anrram”.
— Vou me casar! – deslumbrava-se ela, enquanto a outra, soltava um sorriso sombrio.
— Mas eu nem sabia que a senhora estava namorando! – apelava eu, enquanto a irônica, ria novamente.
— E quem disse que você precisava saber? Filho, eu não nasci pra viver sozinha.
— Desculpe!
— Não precisa se desculpar. Apenas adivinhe com quem vou me casar...
Sentindo-me numa saia justa, apelei para um sorriso forçado, alegando:
— Desculpe! Mas não faço a menor ideia.
Saturada da minha falta de imaginação, mas empolgada para soltar logo a fofoca, ela logo dizia:
— Sabe aquele manezão do meu ex-patrão? Pois nós vamos nos casar. Inclusive estava a sua procura para que em companhia "dessa daí", serem os padrinhos do meu casório.
— Eu?! – estremeci, surpreendido com o convite.
— Por que não? Conhece bem a minha história.
— Também acho. – intrometia a moça, maliciosamente piscando um dos olhos.
Na verdade eu não queria, pois, não sabia que mudanças havia tido D. Flora nos últimos meses em que não a vira. Fora, que o meu santo não batia com o da moça.
Meses se passaram...
Era um sábado ensolarado. O salão onde aguardávamos os noivos, estava lindo. E bota lindo naquilo!
Bem, mais linda estava a fingida, quer dizer, Mônica, era esse o nome dela. Sua presença no casamento estava deslumbrante. Pois, vários suspiros conseguiu arrancar de mim, incrementado com o batuque do coração.
Não sei bem, se era amor.... poderia ser paixão. A única coisa que sei é que eu já estava passando dos meus limites de tanta deslumbração que Mônica trazia aos meus olhos.
Não sei se Mônica havia percebido, mas justo naquele dia, ela havia me tratado diferente, nem uma ironia da parte dela sobre D. Flora eu ganhei.
D. Flora? Ela nem parecia ter existido por àquelas horas.
Conversamos bastante. Nossa! Que Mônica interessante eu pude conhecer! Não sei não, mas ela aparentava sentir algo a mais por mim também! Era o que eu enxergava nos olhos dela!
Nossa conversa estava tão boa, que eu me entreguei de vez. Lógico, cometendo um vacilo. Esquecendo de convidá-la para se sentar. Algo que partiu dela. Eu? Eu procurei atender na mesma hora. Mas por incrível que pareça, a noiva apareceu, digo, D. Flora apareceu. Ela na entrada do salão. Já o seu ex-patrão, digo, o noivo, próximo ao altar; onde o destino os uniriam para sempre.
Nossa! Pela maneira que o noivo a recebia, D. Flora parecia nunca ter falado a verdade sobre ele. Ele era completamente diferente das suas calúnias. Bem, deveria ser pelo amor ainda não correspondido.
A cerimônia prosseguiu. Os pombinhos se casaram.
A hora do buquê também chegou, arrastando a maior parte das mulheres que por ali estavam para a disputa de quem o pegaria. Lógico, Mônica foi junto.
O lance do buquê foi em contagem regressiva até três. Mônica foi a que pegou. Diante dos que já haviam presenciado aquela cena, Mônica foi correndo mostrar para mim.
Dei de surpreendido, afinal, exceto o momento a dois dos noivos, o lance do buquê é a próxima atração do casamento que ninguém fica de fora. É o que vira assunto no casamento.
Depois daquele dia, “D. Flora” nunca mais a vi. Parece que junto do outro, vivem em outro canto da cidade.
Já a Mônica, estamos aqui juntinhos, para esta história te contar...